*O Juramento Árabe...*

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Baçus, mulher de Ali, pastora de camelas,
Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrelas,
Vail, chefe minaz de bárbara pujança,
Matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança,
Corre, célere voa, entra na tenda e conta
A um hóspede de Ali a grave e inulta afronta.

“Baçus, disse tranquilo o hóspede gentil.
Vingar-te-ei com meu braço, eu matarei Vail”.

Disse e cumpriu.
Foi esta a causa verdadeira
Da guerra pertinaz, horrível, carniceira
Que as tribos dividiu. Na luta fratricida,
Omar, filho de Anru, perdera o alento e a vida.

Anru, que lanças mil aos rudes prélios leva,
E que em sangue inimigo, irado, os ódios ceva.
Incansável procura – e é sempre em balde – o vil
Matador de seu filho, o tredo Mualhil
Uma noite, na tenda, a um moço prisioneiro,
Recém-colhido em campo, o indómito guerreiro
Falou, severo, assim:
“Escravo, atende e escuta:
Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta,
Em que vive o traidor Mualhil, diz a verdade;
Dá-me que o alcance vivo, e é tua a liberdade!”

E o moço perguntou:
“É por Alá que o juras?”
“Juro” – o chefe tornou.
“Sou o homem que procuras!
Mualhil é o meu nome, eu fui que espedacei
A lança de teu filho e aos pés o subjuguei!”
E, intrépido, fitava o atónito inimigo.
Anru volveu: “És livre, Alá seja contigo!”

Gonçalves Crespo in “Nocturno”

(*)

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*O Que Nos Divide*

Imaginemos que toda a gente tinha a mesma política, religião, etc. Nem por isso se viveria mais em paz.
Porque logo se descobririam diferenças naquilo que a todos unia.
E paralelamente surgiriam as discordâncias, invejas e ódios subsequentes.
Porque não é a ideologia que no fim de contas divide.
A ideologia é apenas um bom pretexto.
O que nos divide é a importância da nossa pessoa e o grupo extensivo a que nos recolhemos.
O que nos divide é a individualidade que não tem misturas ou só as tem com quem prolongar a pessoa que somos.

Virgilio Ferreira , in 'Conta-Corrente IV'
(*)
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*Nem Excelênte Nem Absoluto*

Todo o Excelênte merece o ostracismo. É um bem, se ele a si próprio se condenar. Todo o Absoluto deve ser banido do mundo. No Mundo tem de se viver com o Mundo. E só se vive, se for no sentido dos Homens com os quais se vive. Todo o bem que há no Mundo provém do interior (e portanto vem-lhe a ele do exterior), mas é apenas uma faísca que, veloz, o percorre. Todo o Excelente faz avançar o Mundo, mas deve desaparecer quanto antes.

Friedrich Von Novalis , in "Fragmentos"

(*)
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*O Desejo de Ser Sincero é Superficial*

O desejo de ser sincero é superficial. Não é por acaso que muitos dos romances entre os últimos aparecidos são escritos na primeira pessoa, de modo a que o eu repetido e disseminado ao longo das páginas produza uma sensação de algo muito próximo a uma lembrança, a uma confissão, a um diário. Não é também por acaso que neles se evita com muito cuidado o enredo ou de certa forma tudo o que possa parecer invenção; e que se narre os factos com garra jornalística, como coisa que realmente tivesse acontecido. A sinceridade, no seu estrito sentido, não suporta a narração objectiva que é um princípio de artifício nem a invenção que em todas as ocasiões pode parecer falsa.

A sinceridade parece-se muito com o mar em certos dias. Há manhãs de tanta bonança que se andamos de barco e nos inclinamos para contemplar a água debaixo de nós, tem-se a impressão de que estamos suspensos sobre transparentes e tangíveis precipícios. A água, por muito profunda que seja, não se opõe a que se olhe a prumo para baixo e se veja, numa claridade esverdeada, o fundo areoso espargido de seixos e de trigueiras céspedes. Nasce então uma espécie de exaltação, deseja-se tocar aquele fundo que parece estar muito perto de nós. No entanto quando se mergulha, mesmo com todo o peso do nosso corpo e toda a força da nossa impulsão só conseguimos penetrar na água um par de metros. Nem sequer afloramos aquela encantada e longínqua profundidade.

Alberto Moravia , in "O Homem Como Fim"
(*)
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*Escritores da Liberdade*


Um "Prémio" e ao mesmo tempo um desafio proposto por :
Mimo-te do Espaço...http://mimo-te.blogspot.com/

Diz a Mimo-te que

"Este mimo tem algo muito peculiar, uma vez que tem como objectivo permear os blogs com uma escrita livre. Não importa se são blogs com textos escritos por amadores ou profissionais, poetas ou simplesmente alguém que por qualquer motivo aqui está divulgando os seus pensamentos, gostos, dons, enfim o que quer que seja."

Assim sendo passo eu a referir que a minha escrita é totalmente livre, pois se assim não fosse não me sentiria bem a fazê-lo.Este espaço por exemplo foi criado para pensar e reflectir, práticamente apenas cito textos de outrém , o que não quer dizer que um dia não passe a escrever pensamentos e reflexões de minha autoria, mas mesmo nos textos que escolho, faço-o livremente.
Há textos e textos, palavras e palavras...certos há que podem até de alguma forma magoar alguém mais sensivel,mas perdoem-me, se fosse a pensar assim... só se escreveriam coisas bonitas...coisas belas , e no mundo da escrita tudo vale,infelizmente até o insulto , quando se publica algo que por algum motivo alguém não gostou e aí, lá vem um comentário com palavras menos "bonitas" a enfeitar o mau caractér de alguns seres menos atenciosos , ou quem sabe atenciosos demais para o que não devem, mas até nesse momento a minha escrita é livre para responder adequadamente a tal.
Logo, considero a minha escrita livre, assumindo a responsabilidade da mesma em tudo o que escrevo e publico.
É pressuposto nomear 10 blogues e hoje vou fazê-lo.
Assim sendo são eles:

Dias http://diadoblog.blogspot.com/

Godess Night http://turbulenciasdoblog.blogspot.com/

Quintarino/Tiago R Cardoso e Silêncio Culpado( autores de) http://notassoltasideiastontas.blogspot.com/

C. Valente http://cvalente.blogspot.com/

Pena http://memoriasvivasereais.blogspot.com/

Flash http://aternurados40.blogspot.com/

Som do Silêncio http://silenciosentido.blogspot.com/

kakauzinha http://lakakau.blogspot.com/

António http://conheciment.blogspot.com/

Como já vai sendo hábito ,são livres de aceitar o desafio , ou não:))


Mimo-te , muito agradecida por este Momento , em que pude pensar e reflectir um pouco sobre este tema
Muitissimo Obrigada

Beijo Agradecido... em ti
(*)

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*A Impossibilidade de Renunciar*

Eu decido correr a uma provável desilusão: e uma manhã recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão. Era o momento de recuar. Mas eu não recuo. Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!... Há na minha vida um bem lamnetável episódio que só se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento em que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas não era, não era. É que eu, se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim. Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa. Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo. E, coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguém as compreende. Ou tão raros...

Mário de Sá-Carneiro , in "Cartas a Fernando Pessoa"
(*)

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*A Sociedade é a Imagem do Homem*


O aperfeiçoamento da Humanidade depende do aperfeiçoamento de cada um dos indivíduos que a formam. Enquanto as partes não forem boas, o todo não pode ser bom. Os homens, na sua maioria, são ainda maus e é, por isso, que a sociedade enferma de tantos males. Não foi a sociedade que fez os homens; foram os homens que fizeram a sociedade.
Quando os homens se tornarem bons, a sociedade tornar-se-á boa, sejam quais forem as bases políticas e económicas em que ela assente. Dizia um bispo francês que preferia um bom muçulmano a um mau cristão. Assim deve ser. As instituições aparecem com as virtudes ou com os defeitos dos homens que as representam.

Teixeira de Pacoaes , in "A Saudade e o Saudosismo"
(*)
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*Amizade Sem Sinceridade*


Acredita-se ter encontrado um meio de tornar a vida deliciosa através da bajulação.
Um homem simples que apenas diz a verdade é visto como o perturbador do prazer público. Foge-se dele porque não agrada a ninguém; foge-se da verdade que ele enuncia, porque é amarga; foge-se da sinceridade que proclama porque apenas traz frutos selvagens; tem-se receio dela porque humilha, porque revolta o orgulho que é a mais estimada das paixões, porque é um pintor fiel que nos faz ver quão disformes somos.
Não admira que seja tão rara: em toda a parte (a sinceridade) é perseguida e proscrita.
Coisa maravilhosa, ela encontra a custo um refúgio no seio da amizade.
Sempre seduzidos pelo mesmo erro, só fazemos amigos para ter pessoas particularmente destinadas a nos agradarem: a nossa estima resume-se à sua complacência; o fim dos consentimentos acarreta o fim da amizade. E quais são esses consentimentos? O que é que mais nos agrada nos amigos? São os contínuos elogios que lhes cobramos como tributos.
A que se deve que já não haja verdadeira amizade entre os homens?
Que esse nome não seja mais do que uma armadilha que empregam com vileza para seduzir?
«É, diz um poeta (Ovídio), porque já não existe sinceridade.»
Com efeito, retirar a sinceridade da amizade é torná-la uma virtude teatral; é desfigurar essa rainha dos corações; é tornar quimérica a união das almas; é introduzir o artíficio no que há de mais santo e a perturbação no que há de mais livre.

Baron de Montesquieu, in "Elogio da Sinceridade"

(*)
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*Loucos e Santos*


Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e aguentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.

*Oscar Wilde*

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*"Liberdade e Constrangimento são dois Aspectos da mesma Necessidade"*


Liberdade e constrangimento são dois aspectos da mesma necessidade, que é ser aquele e não um outro. Livre de ser aquele, não livre de ser um outro. (...) Não há quem o não saiba. Os que reclamam a liberdade reclamam a moral interior, para que nem assim o homem deixe de ser governado. O gendarme - dizem eles de si para si - está no interior. E os que solicitam a coacção afirmam-te que ela é liberdade de espírito. Tu, na tua casa, tens a liberdade de atravessar as antecâmaras, de medir a passos largos as salas, uma por uma, de empurrar as portas, de subir ou descer as escadas. E a tua liberdade cresce à medida que aumentam as paredes e as peias e os ferrolhos. E dispões de um número tanto maior de actos possíveis onde escolher aquele que hás-de praticar, quantas mais obrigações te impôs a duração das tuas pedras. E, na sala comum, onde assentas arraiais no meio da desordem, deixas de dispor de liberdade, passa a haver dissolução.
E, afinal de contas, todos sonham com uma e a mesma cidade. Mas um reclama para o homem, tal como ele é, o direito de agir. O outro, o direito de modelar o homem, para que ele seja e possa agir. E todos celebram o mesmo homem.

Mas enganam-se quer um quer o outro. O primeiro julga-o eterno e existente por si, sem saber que vinte anos de ensino, de constrangimentos e de exercícios alicerçaram nele este e não num outro. As tuas faculdades de amor provêm-te mais do exercício da oração do que da liberdade interior. O mesmo se passa com o instrumento de música, se o não aprendeste a tocar, ou com o poema se não conheces nenhuma linguagem. E o segundo também se engana, porque acredita nas paredes e não no homem, no templo, só conta o silêncio que as domina. E esse silêncio na alma dos homens. E a alma dos homens, onde se conserva esse silêncio. Aí está o templo diante do qual eu me prostro. Mas aqueloutro faz o seu ídolo de pedra e prosterna-se diante da pedra enquanto pedra...

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"
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*Os Caminhos Desapareceram da Alma Humana*


Caminho: faixa de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada distingue-se do caminho não só por ser percorrida de automóvel, mas também por ser uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada não tem em si própria qualquer sentido; só têm sentido os dois pontos que ela liga. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho é em si próprio dotado de um sentido e convida-nos a uma pausa. A estrada é uma desvalorização triunfal do espaço, que hoje não passa de um entrave aos movimentos do homem, de uma perda de tempo.
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.

Milan Kundera, in "A Imortalidade"

(*)
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*"No Amor, Mil Almas, Mil Maneiras Diferentes"*

Publius Ovidius Naso
20 March 43 BCE - 17 CE
*Ovídio*
Nem todas as mulheres experimentam os mesmos sentimentos. Encontrareis mil almas com mil maneiras diferentes. Para as conquistar, empregai mil maneiras. A mesma terra não produz todas as coisas: tal convém à vinha, tal à oliveira; aqui despontarão cereais em abundância. Há nos corações tantos caracteres diferentes, quantos rostos há no mundo. O homem prudente acomodar-se-á a estes inumeráveis caracteres; novo Proteu, tão depressa se diluirá em ondas fluidas para logo ser um leão, uma árvore, um javali de eriçadas cerdas. Os peixes apanham-se aqui com o arpão, ali com o anzol, acolá com as redes puxadas pela corda estendida. E o mesmo método não convirá a todas as idades: uma corça velha descobrirá a armadilha de mais longe; se te mostrares experiente junto de uma noviça, demasiado petulante junto de uma recatada, ela desconfiará que a vais tornar infeliz. Assim é que a mulher que às vezes teme entregar-se a um homem honesto, caiu vergonhosamente nos braços de alguém que a não merece.

Ovídio, in "A Arte de Amar"

(*)
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*"Serenidade da Alma"*


Não examinar o que se passa na alma dos outros dificilmente fará o infortúnio de alguém;
mas os que não seguem com atenção os movimentos das suas próprias almas são fatalmente desditosos.
(...) Ser semelhante ao promontório contra o qual vêm quebrar as vagas e que permanece firme enquanto, à sua volta, espumeja o furor das ondas.
- Que desgraça ter-me acontecido isto!
Não, não é assim que se deve falar, mas desta maneira:
- Que felicidade, apesar do que me aconteceu, eu não me mortificar, não me deixar abater pelo presente nem me assustar pelo futuro!
Na verdade, coisa idêntica poderia suceder a toda a gente, mas bem poucos a suportariam sem se mortificarem. Por que razão considerar este acontecimento infortunado e aquele outro feliz?
Em resumo, chamas de infortúnio para o ser humano aquilo que não é um obstáculo à sua natureza? E consideras um obstáculo à natureza do ser humano aquilo que não vai contra a vontade da sua natureza? Que queres, então? Conheces bem essa vontade; aquilo que te sucede impede-te, por acaso, de ser justo, magnânimo, sóbrio, reflectido, prudente, sincero, modesto, livre, e de possuir as outras virtudes cuja posse assegura à natureza do ser humano a felicidade que lhe é própria? Não te esqueças, doravante, contra tudo aquilo que te possa trazer aflição, de recorrer a este princípio: «Acontecer-me isso não é uma desgraça; suportá-lo corajosamente é uma felicidade.»

Marco Aurélio, in 'Pensamentos e Reflexões'
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*"É por ter Espírito que me Aborreço"*

"Auto-Retrato"

É preciso esconjurar, da forma que nos for possível, este diabo de vida que não sei porque é que nos foi dada e que se torna tão facilmente amarga se não opusermos ao tédio e aos aborrecimentos uma vontade de ferro. É preciso, numa palavra, agitar este corpo e este espírito que se delapidam um ao outro na estagnação e numa indolência que se confunde com um torpor. É preciso passar, necessariamente, do descanso ao trabalho - e reciprocamente: só assim estes parecerão, ao mesmo tempo, agradáveis e salutares. Um desgraçado que trabalhe sem cessar, sob o peso de tarefas inadiáveis, deve ser, sem dúvida, extremamente infeliz, mas um indivíduo que não faça mais do que divertir-se não encontrará nas suas distracções nem prazer nem tranquilidade; sente que luta contra o tédio e que este o prende pelos cabelos - como se fosse um fantasma que se colocasse sempre por detrás de cada distracção e espreitasse por cima do nosso ombro.
Não julgue, cara amiga, que eu só porque trabalho regularmente estou isento das investidas deste terrível inimigo; penso que, quando se tem uma certa disposição de espírito, é preciso termos uma imensa energia de forma a não nos deixarmos absorver e conseguir escapar, graças à nossa força de vontade, à melancolia em que caímos continuamente. O prazer que sinto, neste momento, em dialogar consigo acerca deste sentimento é mais uma prova de como eu me procuro agarrar, avidamente, sempre que tenho forças para isso, a todas as oportunidades para ocupar o espírito (ainda que seja referindo-me a este tédio, que procuro combater).
Sempre pensei que havia tempo a mais. Atribuo em grande parte este sentimento ao prazer que quase sempre encontrei no próprio trabalho: os verdadeiros ou pretensos prazeres que se lhe sucediam não contrastavam talvez muito com a fadiga que me comunicava o trabalho - fadiga que a maior parte dos homens sente duramente. Não tenho dificuldade em imaginar o prazer que deve sentir nas suas horas de repouso essa multidão de homens que vemos vergados sob trabalhos desencorajadores - e não me refiro apenas aos pobres, que têm de ganhar o seu pão quotidiano, mas também aos advogados, aos funcionários, submersos pela papelada e ocupados com encargos fastidiosos ou que não lhe dizem respeito.
No entanto, também é verdade que a maior parte desses indivíduos não têm problemas com a imaginação e vêem nas suas ocupações maquinais uma maneira como qualquer outra de ocupar o tempo. E serão tanto menos infelizes quanto mais medíocres forem. Para me consolar, termino com este último axioma: que é por ter espírito que me aborreço.

Eugène Delacroix, in 'Diário'

(*)

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*Saber Lidar com a Injúria*


"De nada serve tudo ver e tudo ouvir. Não prestemos atenção às injúrias: a maior parte delas não nos atinge porque as ignoramos. Não queres estar irado? Não sejas curioso. Aquele que procura saber o que foi dito sobre si, que desenterra as palavras maldosas, mesmo quando foram ditas em segredo, atormenta-se a si mesmo. É uma determinada interpretação dessas palavras que faz com que ela nos pareçam injúrias: assim, devemos aceitá-las, rirmo-nos delas ou perdoá-las. Devemos circunscrever a ira de diversas maneiras; tomemos a maior parte delas como um jogo ou uma brincadeira. Conta-se que, tendo sido agredido com uma bofetada, Sócrates disse ser aborrecido que os homens não soubessem quando deveriam sair de casa com um elmo. O que importa não é a maneira como a injúria é feita, mas sim a maneira como é tomada; nem vejo por que motivo a moderação há-de ser difícil, pois sei de tiranos, cheios de orgulho, de fortuna e de autoritarismo, que reprimiram a crueldade a que estavam habituados. Um tirano ateniense, Pisístrato, se a memória não me falha, tendo ouvido, de um conviva ébrio, palavras ofensivas sobre a sua crueldade, não faltando sequer quem o apoiasse e o incitasse aqui e ali, suportou tudo isso com calma e respondeu àqueles que o provocavam que não se sentia mais atingido do que se contra ele tivessem investido de olhos vendados. "

Séneca, in 'Da Ira'
Lucio Anneo Séneca

Córdoba 4 a.C. - Roma 65

Texto que para mim , hoje vale IMENSO,
pois foi com ele que algumas situações ,
aprendi ,que devia ignorar:o)
E acredita...
sou MUITO mais feliz

Beijo Sorridente
(*)
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Post Scriptum - Prémio Visitante


E o Quint do blog http://notassoltasideiastontas.blogspot.com/
agraciou-me com uma belissima surpresa.
O Post Scriptum - Prémio Visitante
Porque o visito porque gosto de o visitar, pela presença (que o meu tempo me permite),por algumas palavrinhas que lhe deixo,mas que são deixadas de coração, agraciou-me a mim , ao meu Pensamentos este Mimo...
Muitissimo Agradecida por tal Honra,um sorriso , um beijo

Obrigado , Sorrindo
(*)

Penso eu que não há limites para agraciar quem assim o entendermos
Logo, resolvi agraciar todos , os que me visitam neste espaço
Este Mimo quanto a mim é um Mimo Lindo, pois estamos a agraciar pelo facto nos visitarem, de nos fazerem companhia, de comigo" conversarem "
Sem as vossas visitas , limitar-me-ia eu ,a escrever para mim apenas, mas sorrio aqui,com a vossa presença que embora, neste espaço ,apenas "cite" , dei-me conta que a leitura agrada, e isso simplesmente me incentiva a escrever mais:o)

Passarei a indicar então:

O Próprio Quint, pois é um comentador bem assiduo, logo para ele volta o Miminho , agradecendo já a presença , a simpatia :o))
Goddess Night( Que por acaso foi a 1ª Visita deste Espaço :o)) )
Dias
Flash
Poliedro
rosa dourada/ondina azul
Amaral
poetaeusou
A Vós ,
o meu muito Obrigado,
por comigo partilharem este Espaço,
onde eu gosto imenso de estar,
pois é um sitio onde realmente reflicto e me sinto muito, muito bem
Um Sorriso, um beijo agradecido

Bam Hajam
(*)
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*"A Felicidade Está no Realizar, e Não no Usufruir"*


"Atolavam-se na ilusão da felicidade que extraíam dos bens possuídos. Ora a felicidade o que é senão o calor dos actos e o contentamento da criação? Aqueles que deixam de trocar seja o que for deles próprios e recebem de outrem o alimento, nem que fosse o mais bem escolhido e o mais delicado, aqueles que ouvem subtilmente os poemas alheios sem escreverem os poemas próprios, aproveitam-se do oásis sem o vivificarem, consomem cânticos que lhes fornecem, e fazem lembrar os que se apegam às mangedouras no estábulo e, reduzidos ao papel de gado, mostram-se prontos para a escravatura. "

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"


Algumas das suas frases :

"O Homem distingui-se dos homens. Nada se diz de essencial acerca da catedral se apenas falarmos das pedras. Nada se diz de essencial a respeito do Homem se procurarmos defini-lo pelas qualidades humanas."

"Mulher: a mais nua das carnes vivas e aquela cujo brilho é o mais suave."

"A terra ensina-nos mais acerca de nós próprios do que todos os livros. Porque ela nos resiste."

"Cada um é responsável por todos. Cada um é o único responsável. Cada um é o único responsável por todos."

"Se a vida não tem preço, nós comportamo-nos sempre como se alguma coisa ultrapassasse, em valor, a vida humana... Mas o quê?"

"O verdadeiro homem mede a sua força, quando se defronta com o obstáculo."

"A ordem não cria a vida."

"Os homens compram tudo pronto nas lojas... Mas como não há lojas de amigos, os homens não têm amigos."

"O progresso do homem não é mais do que uma descoberta gradual de que as suas perguntas não têm significado."

"Fica responsável por tudo aquilo que domesticaste."

"Não há uma fatalidade exterior. Mas existe uma fatalidade interior: há sempre um minuto em que nos descobrimos vulneráveis; então, os erros atraem-nos como uma vertigem."

"A grandeza da oração reside principalmente no fato de não ter resposta, do que resulta que essa troca não inclui qualquer espécie de comércio."

"Sacrifício não significa nem amputação nem penitência. (...) Ele é uma oferta de nós próprios ao Ser a que recorremos."

"Os ritos são no tempo o mesmo que o domicílio é no espaço."

"Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direcção."

"Amem quem vos comanda. Mas sem lhes dizer"

"Conhecer não é demonstrar nem explicar, é aceder à visão."

"O escravo constrói o seu orgulho em função do ardor do patrão."

"A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo, unir os homens: não há senão um verdadeiro luxo e esse é o das relações humanas."

"Ao reencontrar os amigos, todos nós já provamos o encanto das más lembranças."

"Tenho o direito de exigir obediência, porque as minhas ordens são sensatas. "

"Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível para os olhos."

"É o espírito que conduz o mundo e não a inteligência. "

"A verdade não é, de modo algum, aquilo que se demonstra, mas aquilo que se simplifica. "

"Também somos ricos das nossas misérias. "

"O que nos salva é dar um passo e outro ainda."

"O que conduz o mundo é o espírito e não a inteligência. "

"Apenas se vê bem com o coração, pois nas horas graves os olhos ficam cegos. "

"Há vitórias que exaltam, outras que corrompem; derrotas que matam, outras que despertam."

"As pessoas crescidas têm sempre necessidade de explicações... Nunca compreendem nada sozinhas e é fatigante para as crianças estarem sempre a dar explicações. "

"Os regulamentos assemelham-se aos ritos de uma religião, que parecem absurdos, mas moldam os homens."


"Ser homem é ser responsável. É sentir que colabora na construção do mundo."


"Amai aqueles em quem mandais. Mas sem lhes dizer nada."

"Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo."

"Na vida, não existem soluções. Existem forças em marcha: é preciso criá-las e, então, a elas seguem-se as soluções."


"É o mesmo sol que derrete a cera e seca a argila."


"Os olhos são cegos. É preciso ver com o coração..."


"Se tu vens às quatro da tarde, desde às três eu começarei a ser feliz."

"Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós."

"Só se vê bem com os olhos do coração. O essencial é invisível aos olhos."

"Os homens cultivam cinco mil rosas num mesmo jardim e não encontram o que procuram. E, no entanto, o que eles buscam poderiaser achado numa só rosa."

"Sois belas, mas vazias. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é porém mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus a redoma. Foi a ela que abriguei com o para-vento. Foi dela que eu matei as larvas. Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa."

"As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam d pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, eram ouro. Mas todas essas estrelas se calam. Tu porém, terás estrelas como ninguém... Quero dizer: quando olhares o céu de noite, (porque habitarei uma delas e estarei rindo), então será como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem sorrir! Assim, tu te sentirás contente por me teres conhecido. Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá). Terás vontade de rir comigo. E abrirá, às vezes, a janela à toa, por gosto... e teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu. Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!

"Não confundas o amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Porque, contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer. (...) Eu sei assim reconhecer aquele que ama verdadeiramente: é que ele não pode ser prejudicado. O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca. "

Um dia muito Lindo Desejo...
(*)
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* Distrito do Porto...algumas Lendas* ...

(Igreja do Senhor Bom Jesus de Matozinhos (São Miguel e Almas) De livro aberto e rubricado por Tomás Antônio Gonzaga em 1785, sabe-se que a capela era dedicada aos Santíssimos Corações de Jesus, Maria, José, Senhor dos Matosinhos e São Miguel e Almas. Portada do Aleijadinho e pinturas de Ataíde. )Fonte:http://www.degeo.ufop.br/Portugues/OuroPreto/relig.htm

O Senhor de Matosinhos
Segundo a tradição, a imagem do Senhor de Matosinhos é uma das mais antigas de toda a cristandade. A lenda diz que esta imagem foi esculpida por Nicodemos, que assistiu aos últimos momentos de vida de Jesus, sendo por isso considerada uma cópia fiel do seu rosto. Nicodemos esculpiu mais quatro imagens mas esta é considerada a primeira e a mais perfeita. A imagem é oca porque nela teria Nicodemos escondido os instrumentos da Paixão e, nesses tempos de perseguição, os objectos sagrados eram escondidos ou atirados ao mar para escaparem à fogueira. Nicodemos atirou a imagem ao mar Mediterrâneo, na Judeia, e esta foi levada pelas águas, passou o estreito de Gibraltar e veio dar à praia de Matosinhos, perdendo na viagem um braço. A população de Bouças ergueu-lhe um templo e designou a imagem por Nosso Senhor de Bouças, venerando-a durante 50 anos pelos seus muitos milagres. Mas um dia, andava uma mulher na praia de Matosinhos a apanhar lenha para a sua lareira, quando encontrou um pedaço de madeira que juntou aos restantes.

Em casa, lançou-o ao fogo mas este pedaço saltou da lareira não só da primeira, mas como de todas as vezes que ela o tentava queimar. A sua filha, muda de nascença, fazia-lhe gestos desesperados para que dizer qualquer coisa e, por fim, balbuciou, perante o espanto da mãe, que o pedaço de madeira era o braço de Nosso Senhor das Bouças. Assombrada pelo milagre a população verificou que o braço se ajustava tão bem à imagem que parecia que nunca dela se tinha separado. No século XVI, a imagem foi mudada para uma igreja em Matosinhos, construída em sua honra, ficando a ser conhecida por Nosso Senhor de Matosinhos.

Santiago e Caio
No ano de 44 da era de Jesus Cristo, passeava pela praia de Matosinhos um ilustre cavaleiro da Maia, Caio Carpo Palenciano, com a sua mulher Claudina e vários parentes e amigos. Cavalgava o grupo pelo areal quando alguém vislumbrou uma barca que se dirigia para norte. Os cavaleiros e as damas pararam todos para apreciar o ritmo e a beleza da embarcação, quando inexplicavelmente o cavalo de Caio galopou para dentro do mar, apesar de este o tentar evitar, como se fosse obrigado por uma força desconhecida. Cavalo e cavaleiro imergiram no mar e desapareceram para ressurgirem perto da barca, para onde subiram cobertos de vieiras. Quando perguntaram à tripulação o motivo deste fenómeno e qual a razão da sua viagem, estes explicaram que eram discípulos cristãos de um homem chamado Tiago. Tinham fugido de grandes perseguições, levando o corpo do seu Mestre para terras de Espanha, onde Tiago tinha pregado o Evangelho. Segundo estes homens, o fenómeno ocorrido com Caio e o seu cavalo poderia ser explicado pelo facto de ele ser um escolhido de Nosso Senhor. As vieiras eram o sinal de Santiago que queria ver Caio abraçar a lei de Deus. Comovido, Caio foi ali mesmo baptizado com água do mar e, quando voltou para junto dos seus familiares e amigos, a todos converteu com o extraordinário feito de Santiago. As vieiras ficaram a fazer parte do brasão da nobre família Pimentel de Trás-os-Montes, descendentes, segundo se crê, de Caio Carpo Palenciano.

Lenda de Valongo e Susão
Os nomes de Valongo e Susão têm origem nesta lenda que remonta à época em que alguns cristãos perseguidos no Oriente se refugiaram em Cale, foz do rio Douro. Entre eles estava o rico negociante judeu Samuel, recém convertido ao Cristianismo, e a sua filha Susana. Pensavam os fugitivos estarem já livres de perseguições quando foram obrigados a defender-se dos árabes que dominavam a região. Com astúcia, prepararam uma armadilha e capturaram o jovem Domus de cujo resgate esperavam obter a paz. Enquanto decorriam as negociações, Domus e Susana apaixonaram-se e o mouro pediu para ser baptizado para poder casar-se com a jovem. O acordo com os muçulmanos era assim impossível e decidiram todos fugir, deixando Portucale (Porto) em direcção ao Oriente. Chegados ao topo da Serra de Santa Justa depararam com uma paisagem lindíssima e a apaixonada Susana exclamou um elogio sincero ao vale longo que sob os seus olhos se estendia. Desceram ao vale e nele decidiram ficar para sempre, edificando as primeiras casas de uma povoação que se veio a chamar Susão, em memória da bela Susana. O vale que Susana tinha achado belo e longo ficou conhecido como Valongo.

Lenda do Rei Ramiro
Uma antiga lenda que remonta ao século X, conta que o rei Ramiro II de Leão se apaixonou por uma bela moura de sangue azul, irmã de Alboazer Alboçadam, rei mouro que possuía as terras que iam de Gaia até Santarém. Influenciado pela sua paixão e com a intenção de pedir a moura em casamento, Ramiro decidiu estabelecer a paz com Alboazer, que o recebeu no seu palácio de Gaia. Apesar de já ser casado, Ramiro pensou que seria fácil obter a anulação do seu casamento pelo parentesco que o unia a D. Aldora. Alboazer recusou terminantemente: nunca daria a irmã em casamento a um cristão e, de todas as formas, esta já estava prometida ao rei de Marrocos. O rei Ramiro, vexado, pareceu aceitar a recusa, mas pediu ao astrólogo Amã que estudasse os astros para decidir qual a melhor altura para raptar a princesa e levou-a consigo nessa data propícia. Dando por falta da irmã, Alboazer ainda chegou a tempo de encontrar os cristãos a embarcar no cais de Gaia. Gerou-se uma luta favorável ao rei cristão, que levou a princesa moura para Leão, a baptizou e lhe deu o nome de Artiga, que tanto significava castigada e ensinada como dotada de todos os bens. Alboazer, para se vingar, raptou a legítima esposa do rei Ramiro, D. Aldora, juntamente com todo o seu séquito. Quando o rei Ramiro soube do rapto ficou louco de raiva e, juntamente com o seu filho D. Ordonho e alguns vassalos, zarpou de barco para Gaia. Aí chegados Ramiro disfarçou-se de pedinte e dirigiu-se a uma fonte onde encontrou uma das aias de D. Aldora a quem pediu um pouco de água, aproveitando para dissimuladamente deitar no recipiente da água meio camafeu, do qual a rainha possuía a outra metade. Reconhecendo a jóia, D. Aldora mandou buscar o rei disfarçado de pedinte e, por vingança da sua infidelidade, entregou-o a Alboazer. Sentindo-se perdido, o rei Ramiro pediu a Alboazer uma morte pública, esperando com astúcia ganhar tempo para poder avisar o seu filho através do toque do seu corno de caça. Ao ouvir o sinal combinado, D. Ordonho acorreu com os seus homens ao castelo e juntos mataram Alboazer e o seu povo, para além de destruírem a cidade. Levando D. Aldora e as suas aias para o seu barco, o rei Ramiro atou uma mó de pedra ao pescoço da rainha e atirou-a ao mar num local que ficou a ser conhecido por Foz de Âncora. O rei Ramiro voltou para Leão onde se casou com a princesa Artiga, de quem teve uma vasta e nobre descendência.

Lenda de Pedro Sem
A torre medieval que se encontra diante do antigo Palácio de Cristal, no Porto, é ainda hoje conhecida por Torre de Pedro Sem. A história diz que essa torre pertencia a Pêro do Sem, doutor de leis, jurisconsulto e chanceler-mor de D. Afonso VI, no século XIV. Mas a lenda remete para uma data posterior, no século XVI, a existência de um personagem Pedro Sem que vivia no seu Palácio da Torre. Possuindo muitas naus na Índia, Pedro Sem era um mercador rico mas não tinha títulos de nobreza, o que muito o afectava. Era também usurário, emprestando dinheiro a juros elevados, à custa da desgraça alheia, enquanto vivia rodeado de luxo. Estavam as suas naus a chegar, carregadas de especiarias e outros bens preciosos, quando a sua máxima ambição foi realizada através do seu casamento com uma jovem da nobreza, em troca do perdão das dívidas de seu pai. Decorria a festa de casamento, que durou quinze dias consecutivos, quando as naus de Pedro Sem se aproximaram da barra do Douro. O arrogante mercador acompanhado pelos seus convidados subiu à torre do seu palácio e, confiante do seu poder, desafiou Deus, dizendo que nem o Criador o poderia fazer pobre. Nesse momento, o céu que estava azul deu lugar a uma grande tempestade! Pedro Sem assistiu, impotente e encharcado pela chuva, ao naufrágio das suas naus. De seguida, a torre foi atingida por um raio que fez deflagrar um incêndio que destruiu todos os seus bens. Arruinado, Pedro Sem passou a pedir esmola nas ruas, lamentando-se a quem passava: "Dê uma esmolinha a Pedro Sem, que teve tudo e agora não tem...".

Lenda dos Tripeiros
No ano de 1415, construíam-se nas margens do Douro as naus e os barcos que haveriam de levar os portugueses, nesse ano, à conquista de Ceuta e, mais tarde, à epopeia dos Descobrimentos. A razão deste empreendimento era secreta e nos estaleiros os boatos eram muitos e variados: uns diziam que as embarcações eram destinadas a transportar a Infanta D. Helena a Inglaterra, onde se casaria; outros diziam que era para levar El-Rei D. João I a Jerusalém para visitar o Santo Sepulcro. Mas havia ainda quem afirmasse a pés juntos que a armada se destinava a conduzir os Infantes D. Pedro e D. Henrique a Nápoles para ali se casarem...

Foi então que o Infante D. Henrique apareceu inesperadamente no Porto para ver o andamento dos trabalhos e, embora satisfeito com o esforço despendido, achou que se poderia fazer ainda mais. E o Infante confidenciou ao mestre Vaz, o fiel encarregado da construção, as verdadeiras e secretas razões que estavam na sua origem: a conquista de Ceuta. Pediu ao mestre e aos seus homens mais empenho e sacrifícios, ao que mestre Vaz lhe assegurou que fariam para o infante o mesmo que tinham feito cerca de trinta anos atrás aquando da guerra com Castela: dariam toda a carne da cidade e comeriam apenas as tripas. Este sacrifício tinha-lhes valido mesmo a alcunha de "tripeiros". Comovido, o infante D. Henrique disse-lhe então que esse nome de "tripeiros" era uma verdadeira honra para o povo do Porto. A História de Portugal registou mais este sacrifício invulgar dos heróicos "tripeiros" que contribuiu para que a grande frota do Infante D. Henrique, com sete galés e vinte naus, partisse a caminho da conquista de Ceuta.
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*Como foi salvo Wang-Fô*

"A Trilha para Shambalah",pintura de Gilbert Williams
O velho pintor Wang‑Fô e o seu discípulo Ling andavam pelas estradas do reino dos Han. O reino dos Han: era o nome por que naquele tempo era conhecida a grande China.
Ninguém pintava melhor que Wang‑Fô as montanhas a sair do nevoeiro, os lagos sobrevoados pelas libélulas e as enormes vagas do Pacífico vistas a partir da costa. Dizia‑se que as suas imagens santas atendiam imediatamente qualquer prece; sempre que ele pintava um
cavalo, tinha que o mostrar preso a uma estaca ou seguro pelas rédeas, pois se assim não fosse o cavalo escapava‑se do quadro a galope e nunca mais ninguém lhe punha a vista em cima. Os ladrões não se atreviam a entrar em casa de quem possuísse um cão de guarda pintado por Wang‑Fô.
Wang‑Fô poderia ter sido rico, mas gostava mais de dar que vender. Distribuía as pinturas que fazia por quem as apreciasse verdadeiramente ou então trocava‑as por uma tigela de comida. O seu carinho ia todo para os pincéis, para os rolos de seda ou de papel de arroz e para os pauzinhos de tinta de diversas cores que ele friccionava contra uma pedra para misturar o pó numa pequena porção de água. [...].
Uma tarde, ao pôr‑do‑sol, chegaram aos subúrbios da capital e Ling arranjou uma estalagem onde Wang‑Fô pudesse passar a noite. O velho aconchegou‑se nuns farrapos e Ling encostou‑se a ele para aquecê‑lo, porque a Primavera ainda mal tinha começado e o gelo continuava a cobrir o chão de terra batida. Ling lamentava a sujidade da estalagem, mas o velho maravilhava‑se com as sombras bruxuleantes que uma lâmpada mortiça projectava nas paredes e com os enigmáticos desenhos que faziam no tecto as marcas da fuligem. De madrugada, ressoaram pesados passos nos corredores e atrás deles ordens gritadas numa língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando‑se de que na véspera roubara um bolo para a refeição do mestre. Certo de que o vinham prender, perguntou aos seus botões quem é que iria ajudar o velho a passar o vau do próximo rio.
Os soldados entraram com lanternas. A chama que se filtrava através do papel multicolor punha nos seus rostos reflexos encarnados, amarelos e azuis. Rugiam como animais ferozes e a corda dos seus arcos vibrava a cada grito. Um deles pousou a mão com rudeza na nuca de Wang-Fô, que não podia deixar de admirar os bordados dos seus mantos. Amparado pelo discípulo, Wang‑Fô seguiu‑os cambaleando através das estradas aos altos e baixos. [...].
Chegaram à entrada do palácio imperial. As paredes violetas insinuavam em pleno dia um tom crepuscular. Os soldados obrigaram Wang‑Fô a atravessar salas redondas ou quadradas cujas formas simbolizavam as estações, os pontos cardeais, a lua e o sol, a longevidade e a Omnipotência. As portas giravam sobre si próprias emitindo notas musicais e o seu encadeamento era de forma a permitir que quem atravessasse o palácio do nascer ao pôr‑do‑sol ouvisse a escala toda. Por fim, o silêncio tornou‑se tão grande que mal se ousava respirar; um escravo soergueu um reposteiro e o pequeno grupo entrou na sala onde reinava o Filho do Céu. [...].
O Mestre do Celeste estava sentado num trono de jade, e, cobertas de rugas, as mãos dele assemelhavam-se às dum ancião, se bem que ele ainda mal tivesse vinte anos. [...]
- Dragão Celeste, disse Wang‑Fô prosternado, sou velho, sou pobre, sou fraco. Tu és como o Verão; eu sou como o Inverno. Tu tens Dez Mil Vidas; eu tenho apenas uma e que vai acabar. Que mal é que eu te fiz? Ataram as minhas mãos que nunca te causaram nenhum dano.
- Perguntas‑me o que é que me fizestes, velho Wang‑Fô? - disse o Imperador. [...] Vou dizer‑to. O meu pai reuniu uma colecção de pinturas tuas no fundo do palácio e foi nessas salas que eu fui criado, velho Wang‑Fô, porque não me deixavam sair, com medo de que visse os infelizes e me afligisse o espírito ou agitasse o coração. Tirando um ou outro velho criado que aparecia o menos possível, a ninguém mais era permitido entrar nos meus domínios, não fosse quem passasse conspurcar‑me com a sombra. De noite, quando não conseguia dormir, ficava a olhar os teus quadros e, durante dez anos, não houve uma só noite em que eu os não tenha contemplado. De dia, sentado num tapete de que já sabia de cor todos os desenhos, descansando as mãos nos meus joelhos de seda amarela, eu imagina­va o mundo - com o país de Han no meio - semelhante à planície côncava e monótona da mão profundamente atravessada pelos Cinco Rios. A toda a sua volta, o mar onde os monstros nascem e, mais longe ainda, as montanhas onde assenta o céu. Tudo isto eu imagina­va com a ajuda dos teus quadros. Aos dezasseis anos reabriram‑se as portas que me separavam do mundo; subi ao terraço do palácio para ver as nuvens, mas elas não se comparavam com as dos teus crepúsculos. Mandei vir uma liteira; sacudido através de estradas atulhadas de lama e de pedras com que eu não contava, percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins repletos de mulheres parecidas com flores e as tuas florestas cheias de antílopes e de pássaros. Os calhaus da beira‑mar fizeram com que eu me enjoasse dos oceanos; a fealdade das aldeias impede‑me de ver a beleza dos arrozais e o riso áspero dos meus soldados dá‑me vómitos. Mentiste‑me, Wang‑Fô, velho aldrabão: o reino de Han não é o mais maravilhoso dos reinos e não sou eu o Imperador. O único império onde vale a pena reinar é aquele onde tu entras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre planícies onde a neve não derrete e sobre campos de flores que nunca morrerão. E é por isso, Wang‑Fô, que eu encontrei o suplício que te estava reservado, a ti cujas pinturas me fizeram detestar o que possuo e desejar o que jamais possuirei. E, para te fechar na única prisão de onde não poderás sair, decidi queimar‑te os olhos, já que os teus olhos são as tuas portas mágicas por onde tu penetras no teu reino. E, já que as tuas mãos são as duas estradas de dez ramificações, que vão até ao coração do teu império, também decidi cortar‑te as mãos. Percebes tu agora, velho Wang‑Fô?
Ouvindo esta sentença, o discípulo Ling arrancou da cintura uma faca amolgada e precipitou‑se sobre o Imperador. Dois guardas sustiveram-no. O Filho do Céu sorriu e acrescentou com um suspiro:
- Também te odeio, velho Wang‑Fô, por te saberes fazer amar. Matem esse maltrapilho.
Ling deu um salto para a frente, afim de evitar que o sangue manchasse a roupa do seu mestre. Um carrasco decapitou‑o com um sabre. Os criados levaram os restos mortais, e Wang‑Fô, desespera­do, admirou a lindíssima mancha escarlate que o sangue do discípulo deixara no pavimento de pedra verde.
O Imperador fez um sinal e dois escravos enxugaram os olhos de Wang‑Fô.
- Ouve, velho Wang‑Fô, disse o Imperador, e pára de chorar, porque não é este o momento mais apropriado. Há na minha colecção das tuas obras um quadro admirável onde as montanhas, o estuário dum rio e o mar se reflectem, é claro que infinitamente reduzidos, mas com uma intensidade que ultrapassa a dos próprios objectos, como as figuras reflectidas na superfície duma esfera. Mas não terminastes esse quadro, Wang‑Fô, e posso obrigar‑te a levá‑lo a cabo. Se te recusares, mando queimar todas as tuas obras antes do teu suplício e serás como um pai que viu morrer à sua frente toda a sua descendência. [...].
Wang‑Fô começou por tingir de cor‑de‑rosa a extremidade duma nuvem pousada numa montanha. Depois, acrescentou à superfície do mar uma pequena ondulação que tornou ainda mais profunda a sua calma. Estranhamente, o pavimento de jade começara a ficar húmido, mas Wang‑Fô, completamente absorvido pelo quadro, não dava conta de que já estava a trabalhar com os pés na água.
O frágil escaler, encorpado pelas pinceladas do pintor, ocupava agora todo o primeiro plano do rolo de seda. Um ruído de remos ergueu‑se de repente na distância, vivo e cadenciado como um bater de asas. Aproximou‑se, encheu a sala toda, depois cessou. Pequenas gotas reluziam, imóveis, suspensas dos remos do barqueiro. Há muito que o ferro em brasa destinado aos olhos de Wang‑Fô se tinha apagado no braseiro do carrasco. Com a água a dar‑lhes pelos ombros, os cortesãos, paralisados pela etiqueta, erguiam‑se nas pontas dos pés. A água por fim atingiu o nível do coração imperial. O silêncio era tão profundo que teria sido possível ouvir lágrimas cair.
Era mesmo Ling. Trazia a roupa de todos os dias e na manga direita viam‑se ainda as marcas dum rasgão que ele não tivera tempo de coser, essa manhã, antes da chegada dos soldados. Mas à volta do pescoço trazia um estranho lenço encarnado.
Sem deixar de pintar, Wang‑Fô disse‑lhe docemente:
- Julgava‑te morto.
- Estando você vivo, disse Ling cheio de respeito, como é que poderia ter morrido?
E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia‑se na água, de maneira que Ling parecia navegar no interior duma gruta.
As tranças dos cortesãos submersos ondulavam à superfície como cobras e a cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
- Repara, meu discípulo, disse Wang‑Fô melancolicamente. Esses infelizes vão morrer, se é que não morreram já. Nunca supus que no mar houvesse tanta água que pudesse afogar um imperador. Poderemos fazer ainda alguma coisa?
- Não te preocupes, Mestre, murmurou o discípulo. Não tarda que eles estejam de novo em seco, sem mesmo se lembrarem de ter molhado as mangas. Só o Imperador é que há‑de guardar no coração um pouco do amargor do mar. Gente como esta não foi feita para se perder dentro dum quadro.
E acrescentou:
- O mar é belo, o vento favorável, as aves marinhas andam a fazer ninhos. Vamos embora, Mestre, para o lá de lá das ondas.
- Vamos, disse o velho pintor.
Wang‑Fô tomou conta do leme, e Ling debruçou‑se sobre os remos. O seu ruído voltou a encher a sala, firme e regular como o bater dum coração. O nível da água ia baixando insensivelmente em torno dos enormes rochedos verticais que eram de novo colunas. Não tardou que apenas algumas esparsas poças de água brilhassem nas depressões do pavimento de jade. Os vestidos dos cortesãos estavam secos, mas o Imperador tinha alguns flocos de espuma na franja do casaco.
O rolo desdobrado e acabado por Wang‑Fô estava encostado a uma tapeçaria. Um barco ocupava todo o primeiro plano. Ia‑se afastando lentamente, deixando atrás de si uma estreita esteira que se voltava a fechar no mar imóvel. Já não se distinguia a cara dos dois homens sentados no escaler, embora ainda se visse o lenço encarna­do de Ling e a barba de Wang‑Fô flutuando ao vento.
A pulsação dos remos foi enfraquecendo, por fim cessou, obliterada pela distância. O Imperador, dobrado para a frente, com a mão em pala sobre os olhos, via afastar‑se o barco de Wang que já não era senão uma mancha imperceptível na palidez crepuscular. Finalmente o barco contornou um rochedo que fechava a entrada do mar alto; a esteira extinguiu‑se na superfície deserta e o pintor Wang‑Fô assim como o seu discípulo Ling desapareceram para sempre sobre aquele mar de jade azul que Wang‑Fô tinha acabado de inventar.
por Marguerite Yourcenar *
Notas:
* Marguerite Yourcenar, pseudônimo de Marguerite Cleenewerck de Crayencour

(8/6/1903, Bruxelas, Bélgica - 17/12/1987, Mount Desert Island, Maine, EUA)
era uma escritora belga de língua francesa, tendo sido a primeira mulher a ser eleita para a Academia Francesa de Letras, em 1980.
Texto extraído de “Comment Wang‑Fô fut Sauvé”, Paris, Gallimard, 1979, o qual foi baseado em um conto tradicional chinês; em português publicado como "A Fuga de Wang‑Fô" , trad.port. Luís Miguel Nava, Lisboa, Contexto, 1983.
Sobre a autora se pode visitar o Museu Yourcenar (em francês). O conto de Yourcenar também foi adaptado ao cinema de animação por Laloux e Caza, e pode ser assistido no YouTube em duas partes (sem legendas):
http://www.youtube.com/watch?v=iZxxZw0Fn4I 1/2
e
http://www.youtube.com/watch?v=Rytyb0YRe4s 2/2

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*O Paradoxo da Representação da Realidade*

"Farei, porém, um esforço para vos dar aquela realidade que vocês julgam ter, ou seja, esforçar-me-ei por vos querer em mim como vocês se querem. Já sabemos que não é possível, dado que, por mais esforços que eu faça para vos representar à vossa maneira, será sempre «à vossa maneira» apenas para mim, não «à vossa maneira» para vocês e para os outros.
Mas desculpem: se para vocês eu não tenho outra realidade fora daquela que vocês me dão, e estou pronto a reconhecer e a admitir que essa não é menos verdadeira que a que eu poderei dar a mim mesmo, que essa, para vocês, é a única verdadeira (e sabe Deus a realidade que vocês me dão!), vão lamentar-se agora da realidade que eu lhes darei, esforçando-me, com toda a boa vontade, por vos representar à vossa maneira tanto quanto me seja possível?

Não presumo que vocês sejam como eu vos represento. Já disse que vocês também não são aquele um tal como o representam para vocês próprios, mas muitos ao mesmo tempo, segundo todas as vossas possibilidades de ser e os acasos, as relações e as circunstâncias. Então, que mal é que eu vos fiz? Vocês é que me fazem mal, julgando que eu não tenho ou não posso ter outra realidade fora da que vocês me dão e que é apenas vossa, acreditem, uma ideia que vocês fizeram de mim, uma possibilidade de ser como vocês a sentem, como vos parece, como intimamente a reconhecem possível, já que daquilo que eu posso ser para mim, não só não podem saber nada, como eu
mesmo nada posso saber. "

Luigi Pirandello (escritor italiano, 1867-1936),
in "Um, Ninguém e Cem Mil"


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Busto de Pirandello
num parque de Palermo
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